Sigmund Freud - Arte, literatura e os artistas - Autêntica Editora - 2016(1).pdf

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Os textos aqui reunidos, à exceção daquele sobre a
Gradiva
de Jensen e
do famoso texto sobre o
Unheimliche,
que serão publicados em volumes
separados, constituem a totalidade dos escritos de Freud sobre literatura,
artes e artistas. Vistos no seu conjunto, eles abarcam um período
extremamente significativo da obra de Freud, desde a referência que
aparece no
Manuscrito N,
anexado a uma carta a Fliess, de 31 de maio de
1897 até o discurso de agradecimento ao Prêmio Goethe, publicado pela
primeira vez em 1930. Isso não significa, evidentemente, que após esse
período Freud tenha deixado de se interessar por esse tema ou que deixou
de mencioná-lo em sua obra. O que ele, de fato, deixou de fazer foi escrever
algo específico sobre o assunto. Deixemos de lado qualquer especulação,
por mais importante que ela possa parecer, do porquê desse silêncio após
1930. O importante, ao contrário, é ressaltar a importância, para o próprio
Freud, do tema da criação artística e do efeito das obras de arte sobre o
espectador.
Dos inúmeros testemunhos a respeito do apreço de Freud pelo tema,
relembro apenas um, muito especial, por ser o de Max Graf, crítico musical
vienense e também judeu que participou ativamente das reuniões das
“Quartas-Feiras”, na casa de Freud. Graf, que passou à história da
Psicanálise muito mais por ser o pai do “Pequeno Hans”, foi o fiel
depositário do primeiro dos escritos de Freud sobre o assunto, “Personagens
psicopáticos no palco”, que ele publica com a anuência da família de Freud,
numa tradução inglesa, apenas em 1942, o mesmo ano em que emigrou para
os Estados Unidos. Sobre essa questão, ele diz: “Freud foi uma das pessoas
mais cultivadas que conheci. Ele conhecia todas as obras mais importantes
 
 
 
 
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OICÁFERP
dos escritores. Conhecia os quadros dos grandes artistas, que tinha estudado
nos museus e igrejas da Itália e da Holanda” (G
RAF
, 1993, p. 33).
Entretanto, logo em seguida, Graf acrescenta um julgamento a respeito
desse interesse de Freud por escritores e artistas, que passou a constituir
uma espécie de lugar-comum na recepção posterior: “A despeito de suas
inclinações artísticas e da natureza romântica de sua exploração do
inconsciente, era o próprio tipo do praticante das ciências naturais. Sua
análise do inconsciente era racionalista. Levar o inconsciente à consciência,
o método que ele inventa, a transformação dos afetos – ele efetua tudo isso
pelo raciocínio e se assegura de sua dominação pelo raciocínio. Freud não
esperava nada da metafísica. Não era sensível à filosofia. Frequentemente,
chegava a ser surpreendente a que ponto ele rejeitava, violentamente, a
metafísica”.
Se, por um lado, Graf não deixou de reconhecer as “inclinações
artísticas” de Freud, seu vasto conhecimento da literatura, em especial, mas
também seu interesse pela pintura, por outro, recorrendo a sua proximidade
com Freud, não deixou de fazer a partilha entre arte, ciência e metafísica.
Desse modo, ao acentuar que o interesse maior de Freud era a ciência – e
nos restam alguns testemunhos do próprio Freud que sustentam essa
convicção – não deixou de presumir que os textos que surgiram das
“inclinações artísticas” de Freud não poderiam ocupar um lugar central em
sua obra. Eles até decorriam da importância que tinha, para Freud, a
aplicação de seu método aos mais variados domínios da vida psíquica, de
tal modo que essa múltipla aplicação constituía no fundo uma “unidade”
(G
RAF
, 1993, p. 24), uma espécie de “sistema”, poder-se-ia acrescentar.
Graf, é bem verdade, não deixa de destacar que “Freud era particularmente
cuidadoso ao submeter a tragédia à investigação psicanalítica” e mesmo ao
estabelecer, com justa razão, uma ligação entre “Personagens psicopáticos
no palco” e
A interpretação dos sonhos
(G
RAF
, 1993, p. 25). Entretanto, ao
final, essas “inclinações” pertenciam ao imaginário romântico de Freud e
ocupavam um grau abaixo de seu verdadeiro espírito, o de cientista.
O texto de Graf já refletia, por sua vez, um conjunto de questões,
problemas e críticas que os escritos de Freud sobre arte suscitaram. As
análises que relacionavam a criação artística às experiências traumáticas
dos artistas, em especial à sua sexualidade e ao Complexo de Édipo,
desencadearam o fortalecimento de um gênero já existente desde o final do
século XIX, as “patografias”, nas quais as obras de personagens célebres,
sejam escritores como Baudelaire ou filósofos como Nietzsche, eram
examinadas à luz de um estudo médico-psiquiátrico de seus respectivos
autores. Um exemplo clássico da aliança entre patografia e Psicanálise, por
exemplo, é o livro de René Laforgue,
O fracasso de Baudelaire: um estudo
psicanalítico sobre a obra de Charles Baudelaire,
publicado em 1931.
Laforgue, que passa à história da Psicanálise como o primeiro a abrir um
consultório em Paris, associava os impasses, as tensões, a escolha dos temas
na obra de Baudelaire a uma espécie de má resolução de Complexo de
Édipo de seu autor. Entretanto, bem antes de Laforgue, Ernst Jones já havia
publicado, em 1910, no
The American Journal of Psychology,
uma primeira
versão de seu “Hamlet e o complexo de Édipo”, publicado como livro,
numa versão bastante aumentada, apenas em 1949. Em 1933, por sua vez,
Marie Bonaparte publicava seu volumoso “estudo psicanalítico” sobre
Edgar Allan Poe, no qual vida e obra se interpenetravam completamente.
Finalmente, cabe ressaltar, que dentre os pertencentes ao círculo íntimo de
Freud, como o foram Jones e a Princesa Marie, Otto Rank ocupa não apenas
um lugar proeminente como aquele que mais se interessou pelas relações
entre arte e Psicanálise, tendo publicado cerca de nove livros sobre o
assunto, desde
O artista,
de 1907, mas também por ter sido referido com
frequência por Freud, como o mostra um texto da importância do
Unheimliche.
Se me refiro a alguns dos discípulos mais próximos é apenas para
destacar o quanto as ideias de Freud os instigaram a realizar estudos nesse
campo. O que significava que eles perceberam, de imediato, a importância
que o próprio Freud dava ao assunto. Entretanto, por mais que esses
estudos, incluindo o de Laforgue, se pautassem numa leitura intensa dos
escritos de Freud, eles não impediram a vulgarização dessas ideias. Desse
modo, a articulação feita por Freud entre vida e obra do escritor ou do
artista foi acusada de reduzir a obra à neurose de seu autor e, com isso,
ignorar a autonomia própria à obra, à sua forma, criando assim um sério
obstáculo a sua leitura e compreensão. Se Graf reduziu a preocupação de
Freud à sua “imaginação romântica”, o julgamento da posteridade foi muito
mais radical: Freud havia se equivocado completamente e, por isso,
deveríamos manter distância desses textos, mesmo que seja um afastamento
respeitoso.
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